"Seu orifício anal não é de ouro!"


Era uma terça feira comum. O dia estava ensolarado e quente. Talvez não fosse tão comum devido ao imenso calor. Pablo estava de janela na sala dos professores (chama-se de janela o período de intervalo entre uma aula a outra) como sempre ficava entediado nessas horas... Poderia preencher diários, mas não fazia, era burocracia demais, podia ler, mas o barulho insuportável da fofoca de alguns professores que ali estavam incomodava muito... Era opressor o jeito de se fazer ouvir gritando de uma professora... Então, Pablo decidiu dar uma volta no pátio e pensar em cosias mais importantes.
Logo encontrou uma aluna sentada na grama verde próxima à quadra. Estranhou, se tratava de uma boa menina que nunca saia de sala de aula, nem por doença...
- Estranho...
Foi até, estava intrigado, ela estava com um sorriso triste e um olhar desiludido. Que algo aconteceu não havia dúvida. Pablo se aproxima com uma conversa amigável, jogando papo fora, sabe como os alunos reagem a situações angustiantes... Mas também pode não ser nada ou uma TPM rotineira... Alguns minutos de conversa se passam, e Pablo sabe que algo aconteceu realmente... Mas não sabe o que... Paula é tímida, reluta a contar...
- Não aconteceu nada professor... (suspiro com olhar triste).
Pablo teme pressionar a menina e faze-la se expor... Então brinca muda de assunto e decide sair, tomar água, circular... Quando se levanta... Paula pede que espere... Ela parece afobada.
- Professor, fica mais um pouco quero conversar... Estou triste...
(Ah que surpresa, eu nem imaginei... Pensa Pablo).
Aos poucos Paula, consegue se acalmar. Pablo pega um copo de água para ela e vão a um lugar com menos circulação de gente. Às vezes é preciso fugir de inspetores que são loucos por fofoca e ficam tentando ouvir conversas por aí. Paula começa a se abrir.
- Professor, lembra da aula da semana passada sobre machismo?
(Como esquecer, o colega da sala dela estava agarrando e deixando marcas nos braços de Helena, uma menina da mesma sala. O garotão fazia isso e tentava forçar beijos, ela resistia e ameaçava contar a Pablo, ou à direção, ele a ameaçava dizendo que ia bater nela se fizesse isso. Pablo descobriu e tentou contar a diretora ouviu um “Não gostaria de tomar uma posição, é uma situação complicada, ela precisa entender que é fase dele. Podemos inibi-lo sexualmente”............................................ Então ele dedicou uma aula sobre isso além de ele mesmo tomar as ações para inibir o garoto de agarrar Helena)
- Lembro sim. O que tem? Não me diga que José aprontou de novo?!


- Não, não, nada haver com ele... É que aconteceu um negócio muito chato comigo agora pouco na rua... – A menina suspirava e respirava cada vez mais forte, estava ansiosa. Não era o jeito dela, então dava para imaginar algo ruim... “Mas o que será?”. Pablo ficou ansioso. Estava com medo.



Paula começou a contar o ocorrido. Estava indo a pé na escola, coisa rara, normalmente vai de van. Mas a mãe, que é designer de interiores (e segundo a filha a mãe trabalha em uma firma de “regime semi fechado”), queria passar um tempo a mais com a filha e decidiu ir caminhando com ela para a escola. A menina estava com calor e estava usando o “artefato da vulgaridade”, aquele que segundo boa parte dos homens machões induz ao sexo: o shortinho. Pablo estava gelado para saber aonde isso foi acabar... A mãe e a menina iam vindo pela marginal e volta e meia algum carro passava e ecoava um grito “gostosas!”. Alguns dirão que isso foi para elogia-las. Mas o mais marcante foi quando entraram na padaria próxima a escola. A mãe entrou pegar um lanche para a filha e a menina ficou do lado de fora brincando com um cão de rua. Havia um grupo de pedreiros ai, estavam mexendo em uma obra da prefeitura. Paula é uma menina de 13 anos. É bonita e desenvolvida fisicamente pela idade e tem quase o tamanho do professor, não que este seja uma referência em tamanho... Mas por se tratar de uma menina nova, dá para se ter uma noção de que ela é relativamente alta para idade. É loira e tem olhos azuis. Um sorriso bonito e é tímida demais.
Pablo não sabia se esses homens seguiam o estereótipo social do pedreiro machão que meche e as vezes estupra mulheres e meninas na rua, ou se eram machões seguindo o estereótipo de um macho alfa querendo marcar território entre outros machos. Mas não importa, o que fizeram foi grotesco. Paula fez questão de contar uma a uma das cosias que ouviu, com os olhos aguados. Aparentemente no início, nem acreditava que faziam isso com ela. É visível que é uma criança e estava até com a camiseta da escola!
- Ei mina, você é gostosinha hein.
- Ei não quer ver a obra que estou levantado?
- Ei mina não se faça de surda, seu ** não é de ouro não, já dou um trato em você e vai aprender que ** doce não é comigo.
O dono da padaria e a mãe dela ouviram e viram a menina em pânico, vermelha, assustada... (Pablo imaginou a cena com coração apertado, ela nem fala na sala e quando vai tirar dúvida o chama para falar com sussurros no ouvido dele... É uma timidez imensa! Como a dele em tempos de adolescência, ou até mais!). Logo os dois saíram e discutiram com os insolentes pedreiros. Eram uns 4 que mexiam com a menina e entre gargalhadas exibiam um grande peso de uma sociedade que se forjou nos pilares do “homem como núcleo da família”, o patriarcalismo judaico-cristão somado a coisificação da mulher como um mero produto dessa sociedade do espetáculo. Mas o quarteto não parou e logo mexeram com a mãe. No mesmo nível...
A mãe, então percebeu que se tratava de causa perdida. Pegou a filha e deixou os caras gritando lá trás, cosias grotescas. Tentou acalmar a filha. Mas a menina estava em choque. Chorou um monte, sentiu-se fraca e humilhada. E ficou ali, do lado de fora, sozinha, tentando se acalmar até Pablo chegar.
- Entendo... (comentou o professor). Ele já tinha ouvido falar desses quatro mexendo com as meninas da escola, em especial do fundamental. Sabia que a escola não daria nem bola. “Fora da escola o problema não é nosso”... Mesmo que se tratasse de algo que ele alegasse afetar o pedagógico... Precisaria ele, fazer algo. E ele sabia o que.
Mas antes tratou de acalmar a aluna. Fez piadas e explicou que aquilo era algo que, infelizmente, ela talvez passar por mais vezes, e nunca deveria aceitar ou se acostumar, mas jamais deixar-se ferir daquela forma. “O mundo é cruel. Ela precisa aprender a se defender.“.
Depois de acalma-la. Pablo deu as suas aulas, pensando naquilo. Imaginando o nervosismo da menina. Mesmo que um reflexo histórico-social, não se justifica uma ação destas. Pablo ligou para um amigo, policial, explicou a situação. E juntos foram falar com os quatro machões. Ensinar-lhes que assédio moral é crime e qualquer ação contra menor acarreta uma gravidade maior. Os quatro não riram se justificaram acusando. “Todo mundo faz”. “Tem mulher que gosta”. Mas entenderam o recado. Nunca mais houve reclamações de alunas. Mas Pablo...
“Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”. “Todo mundo faz”.



“Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”. “Tem mulher que gosta”.
Ecoou na mente de Pablo por dias. Seria uma acusação? Pablo os oprimiu? Mas e Paula? Gostou? Sentiu-se feliz? E Helena? E as outras meninas? “Mas é costumeiro, não posso querer romper com amarras históricas. Tornei-me opressor? Moralista?”. Não! Pablo havia refutado uma amarra histórica, de mais de séculos que se dinamizou com a consolidação da indústria cultural e a sociedade do espetáculo. Ele não oprimiu escolhas. Ele libertou a aluna, por um tempo, de uma situação histórica. Algo que ela, as moças as quais os pedreiros se referiram e eles não entendiam. Pablo ainda que soubesse algo, era pouco, mas o suficiente para compreender os fatores em jogo. “Escolha” e “opinião” são palavras simples, mas exibem tantos pesos que é complexo falar delas. Mito da caverna, história de longa duração, homem animal social...
O mito de Platão narra à vida de alguns homens que nasceram e cresceram dentro de uma caverna e ficavam voltados para o fundo dela. Ali contemplavam uma réstia de luz que refletia sombras no fundo da parede. Esse era o seu mundo. Certo dia, um dos habitantes resolveu voltar-se para o lado de fora da caverna e logo ficou cego devido à claridade da luz. E, aos poucos, vislumbrou outro mundo com natureza, cores, “imagens” diferentes do que estava acostumado a “ver”. Voltou para a caverna para narrar o fato aos seus amigos, mas eles não acreditaram nele e revoltados com a “mentira” o mataram.
“Quantas Paulas não foram impedidas por N fatores de olharem a tal luz. E esses pedreiros? O quanto deles não existe em nós? Quantos como eles não conhecemos e assistimos fazendo a mesma coisa? Precisamos sair dessa caverna doentia onde tudo é relação de poder (homem x mulher, pai x filho, branco x negro). Mas a escola não é a estrutura base dessa caverna? Inibi-lo sexualmente - ela precisa entender - não é dentro da escola - a roupa dela induziu a sedução. Frases que ouvi na escola sobre esse caso. Muitos já devem ter ouvido isso.”. Mas para romper é preciso abrir e mexer em feridas desse mundo em decomposição. É um trabalho de formiga que as gera muitos raspões. Mas pelo sorriso de Paula, vale a pena. 

1 comentários:

Oswaldo (Duco) disse...

Lendo o seu relato, percebo que vivemos em uma sociedade estruturada por valores e concepções machistas e patriarcais. Fica claro, no meu entender, que há praticamente uma relação obscena de impor um domínio sádico (do macho) com relação à mulher, ou tudo que se trate do sexo feminino. Em querer dominar e dominá-la e fazer entender para os demais que domina. Que a mulher só cabe o papel de não resistir às investidas do macho-alfa Conquistador, galanteador. O pior, como você bem relatou, é que essa sociedade do espetáculo, da industria cultural contribui muito para esse cenário machista.