Anos finais da Ditadura Civil-Militar e a consolidação do heavy metal.

1. Introdução



A cidade se fez carne, corpo, sangue. Ela se mexe. “E todos somos obsoletos”... conclui assim. Obsoletos: não funciona mais nenhuma categoria compacta que tenha a sociedade como ponto de partida, como fonte epistêmica, como projeto unificado. A metrópole – atroz, chocante, ensurdecedora como o rock – em seu levantar-se e encaminhar-se dissolve o nós social.
(Massimo Canevacci)
“Você andava e já escutava um barulho, do camburão assim, você já sabia o barulho do freio dos caras. Sabe quando você consegue identificar o freio de um carro? De uma veraneio. Já via aquele carro preto e branco do seu lado...”
(banda Witchhammer)

O golpe civil militar acontece no ano de 1964, movido à interesses imperialistas (capital estrangeiro com suas multinacionais) e pró imperialistas (elites locais), articulando um apoio civil, através de empresas que financiavam o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais). Por sua vez, o instituto utilizou a cultura popular como cinema, tv, jornais e revistas a favor dos golpistas com discurso de responsabilização pelo governo do então presidente da república João Goulart. Em filmes, financiados por esses grupos golpistas, que foram resgatados por Denise Assis, jornalista e integrante da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, e expostos no Seminário “Como as empresas se beneficiaram e apoiaram a ditadura” organizado pela comissão da verdade de São Paulo apontam problemas sociais-históricos e até derivado de governos anteriores, como rodovias ruins e precarização de hospitais, ou mesmo alguns inexistentes, como o lendário “golpe Comunista”, em uma justificativa ao golpe. Com o IPES fundado por empresários do Rio e de São Paulo articulados com empresários multinacionais, arquitetou-se um imaginário a respeito de um suposto golpe comunista no Brasil e principalmente a construção de uma imagem bestializada dessa ideologia por meio de doutrinação, e os meios de comunicação de massa como rádios, cinema e a televisão ganham espaço e principalmente importância na sociedade brasileira através desse processo. No campo musical, que é o assunto que tange esse nosso artigo, alguns artistas que flertaram e até se beneficiaram com o regime militar e suas políticas de massa, sendo “porta vozes” de políticas e atos do regime, como o caso de Roberto Carlos e outros figurões da música brasileira. Outros, principalmente na MPB, no samba e na bossa nova confrontaram e questionaram. Entretanto, fica importante ressaltar que no campo das artes brasileiras a maior resistência ao regime veio das artes cênicas.


2. Estética heavy metal na ditadura militar.

Já no final dos anos 70, alguns grupos de rock n’ roll e punk começam a se consolidar em algumas grandes cidades brasileiras. Musicalmente falando, já no final dos anos 60 e começo dos anos 70, grupos e artistas nacionais recebiam forte influência dos grupos de rock, como o caso dos Novos Baianos. Mas o cenário mais “pesado”, mais extremo, com uma série de rupturas agressivas no campo da estética visual, musical e ideológica se consolida em cenários urbanos com o passar da década de 70 e começo da de 80.
Em meados dos anos 70 no Pará surge uma das mais importantes formações do heavy metal brasileiro, o Stress que em 1982 lança seu álbum de estreia, homônimo, e marca o início de uma geração que havia se consolidado fortemente no final da década de 70 nos porões do underground. Mas o primeiro álbum de heavy metal do brasil não passou em branco no que tange à censura da ditadura. As músicas “Corpus Christi” e “o Lixo” sofreram graus distintos de censura, a primeira viera a ter sue nome modificado para “Oráculo de Judas”.



(...)
Castigo do incerto pecado
A procura eterna do saber
O sangue tornou-se vinagre
É perdida a fé, ninguém crê
Distorcem tuas palavras
Impassíveis prosseguem a missão
A verdade um dia foi dita
Receberam seu galardão
(Trecho de “Oráculo do Judas” - Stress)

Uma geração inteira formada sob a tutela de um projeto educacional do regime civil-militar, mas que por algumas especificidades socioculturais a juventude retornava essa tentativa de doutrinação à sociedade em forma de arte da mais agressiva, suja e desarticulada de enquadramentos morais disponível no contexto, o metal extremo.
Os espaços urbanos começavam a ser ocupados por uma série de novas subculturas que viviam de trocas de fitas por correios, shows em locais sem muita estrutura e conflitos com militares e grupos sociais, em especial com as comunidades cristãs. O conflito que já havia alcançado algumas proporções na Europa e EUA, veio em fortes proporções no Brasil, mesmo com a ditadura ainda acontecendo. Grupos cada vez mais pesados liricamente e visualmente começavam a circular nas grandes cidades e uma das mais lendárias cenas, a de metal extremo em Belo Horizonte, começava a dar seus passos com seus adolescentes que viriam a formar algumas das bandas mais relevantes do cenário mundial. Sarcófago, Chakal, Sepultura, Mutilator e Holocausto, são algumas das bandas mineiras cujas letras e as posturas expões o lado mais agressivo no quesito religião e até social. A entrevista de Max Cavalera, fundador e ex-vocalista da banda mineira Sepultura, nos orienta sobre essa questão:

“Quase todo mundo que nasceu lá vai à igreja e começa a rezar, e já é católico. Como eu costumava ser, até começar a entender as coisas e descobrir que é só um monte de merda. Tudo é surreal. A Igreja é tão rica e não faz nada para ajudar as pessoas, na verdade. Há mais igrejas do que casa lá.” (Christie, p. 336)

Expondo a direção de um conflito evidente entre as novas subculturas que se consolidavam aos poucos no Brasil e que se conflitavam com práticas e costumes mais tradicionais dessa sociedade. Outra referência bastante importante a ser ressaltada sobre a desconexão dessa geração extrema em relação aos padrões impostos pela ditadura ou mesmo a moral religiosa está no encarte do álbum do Sarcófago.
Escrito por Wagner “Antichrist” Lamounier vocalista e guitarrista da banda, o manifesto atira para muitos lados dos quais a forte herança do regime militar havia deixado nas feridas dessa sociedade e como consequência nesses jovens. 

"Não temos certeza quanto aos outros, todos desconfiamos de todos graças a uma palavra que instituiu esta merda social. Essa palavra‚ MORAL. A moral impede que falemos com todos, que nos relacionemos sexualmente, que os pobres digam a verdade. A moral nos impede de pensar, atuar e falar. Estamos sob a moral dos ricos, que preferem a cultura idiota da televisão à cultura do seu povo e de sua terra. A moral do cristianismo que nega a vida em favor do sofrimento e de um futuro incerto. Não queremos ser santos, enclausurando-nos e aceitando o destino como imutável. Nós somos guerreiros, devemos lutar por um destino melhor para nós, nosso povo e nosso país.
Então erga sua cabeça e liberte-se de sua religião, moral, sistema, ideologia dominante e todas essas correntes que o prendem a esta forma insignificante de viver. Ricos: o seu dinheiro só serve para forjar o seu suicídio e instigar o povo que você tanto explora, revolução e consequentemente o seu fim. E por isso que queremos guerreiros, e não covardes que têm medo de ir de peito aberto contra tudo que está erroneamente instituído neste país.
Cristo‚ o símbolo máximo desta covardia, pois se deixou matar pela classe dominante, assim como o povo faz hoje, se deixa matar pela ideologia da Igreja: o capitalismo. A moral nega a vida. "Só os que dão sua vida em batalha espontaneamente para libertar seu povo do opressor serão aceitos no Paraíso" (filosofia ) contraria a cristã que recomenda agachar-se diante da burguesia que nos impede de pensar).
Hoje, se você sentiu-se agredido com este manifesto, só posso dizer-lhe que lamento muito, pois você está enfermo de moral e não possui livre pensamento. Graças a isto você se implode, se suicida, carrega uma cruz que não a sua, se sente frustrado e trabalha como um escravo para os donos dos meios de produção que manipulam o dinheiro, os meios de comunicação, o governo de centro e de direita e que‚ mais triste: manipulam você.
Por isso novamente digo: liberte-se, grite e lute, pois nós estamos asfixiando a esperança de ver esse povo, esta terra e este Brasil realmente grandes!"
(Manifesto por Wagner (Sarcófago) na contra capa do disco Rotting 1989)


A agressividade que transpunha o campo musical, permeava atitudes e ideologias de jovens que haviam crescido em escolas muito rígidas e ambientes tensos sobre o que falar ou não. Quando a ditadura “acabou”, isso se não levarmos em conta suas heranças no campo econômico, pedagógico e social, em 85, Wagner tinha aproximados 15 anos e estava participando do EP[1] de estreia do Sepultura, outra lenda mineira, o Bestial Devastantion junto à banda Overdose, fundado em 83, um grupo pouco mais rodado na cena, que contribui nesse EP com Século XX.
O cenário político brasileiro fervilhava com o processo transitório e o final da ditadura civil-militar, mas ainda grupos sofriam na pele a consequência de políticas como o “Milagre Econômico” e a repressão que continuava se arrastando entre as classes mais desfavorecidas economicamente, dos quais muitos jovens headbanger[2] derivavam.
O heavy metal enquanto subcultura global no faz salientar que já em meados dos anos 80 a cultura sombria desse gênero musical havia se espalhado como uma “praga” no globo chegando a locais inimagináveis ou no mínimo improváveis, e dessa forma abraçava e aspirava uma série de ideologias permeadas pelas especificidades e necessidades locais. Se bandas extremas de outros países e continentes falavam sobre assuntos locais, as da América do Sul tinham em comum a preferência falar sobre liberdade, luta contra repressão, atacar o cristianismo, o capitalismo e algum outro tipo de padrão sócio econômico, e olhando para esse lado do heavy metal o antropólogo costa-riquenho Jeff Brenes, no documentário “Cadáver exquisito: La cultura metal en América Latina” fala da questão dos problemas sociais, entre eles a pobreza, a repressão das ditaduras e a opressão moral que se relaciona ao campo religioso, visual e comportamental. Esses são alguns dos principais elementos que tornou a cena de metal extremo na América Latina uma das maiores e mais importantes do cenário mundial. As letras, as atitudes então mencionadas seriam reflexo de uma série de fatores e que explodiriam através de batidas “metranca[3]” na bateria, vocais sujos, agressivos, berrados. Capas de discos chocantes e visual altamente pesado. Algumas remetiam a nomes de peso da arte europeia como Bosch e Rafael Sanzio, com óbvias e específicas características.




3. Considerações finais.

Para a mão de ferro do regime, certos pontos não passaram batidos, principalmente quando hordas de jovens aparecem de cabelos cumpridos e camisetas de bandas como Iron Maiden, Venon, Motorhead e outras tantas cujas artes visuais eram bastante chamativas, repletas de signos como cores escuras e fortes, monstros e sangue além de outros acessórios que rompiam e agrediam o visual das metrópoles que estavam sob o julgo militar.
Calças rasgadas ou justas, “spikes”[1], jaquetas de couro ou coletes de jeans com uma série de desenhos de bandas. O visual dos jovens headbangers brasileiros era uma ruptura visual bastante forte em seu contexto inicial e se o objetivo era demarcação nos espaços urbanos, esse objetivo se alcançou rapidamente, o que provavelmente pode ser como análise da rápida consolidação de cenários no Rio de janeiro, São Paulo, Salvador, Brasília e Belo Horizonte.



“O preto é importante e o couro também. Prata é legal nas tachas. Não é Prata de verdade, é níquel. Preto na cultura ocidental, em geral, é bem interessante. Significa o perigo, o mal, mas também a liberdade, fora da luz do dia onde as pessoas não estão observando você." (GLOBAL METAL, 2008)

O visual para uma subcultura é um de seus aspectos de identidade, através de processos de relação entre si e a negação de outras subculturas assim como de imposições visuais que provenham da sociedade burguesa, através dos veículos de comunicação em massa.
Os jovens da classe trabalhadora brasileira buscavam meios de expressar suas preocupações e suas insatisfações com a sociedade e encontravam no heavy metal, uma subcultura nascida na Inglaterra que transcendia limites geográficos e facilmente se adaptava a diversos contextos sociais, um bom meio de chocar seus pais, a igreja e as pessoas que transitavam nos espaços urbanos do Brasil.
Outro aspecto importante a ser ressaltado é o conflito com outras subculturas que também estavam se consolidando quase que temporalmente de forma simultânea com o heavy metal, como punks e o movimentos skinhead. Esses conflitos foram bastante memoráveis no começo e meados da década de 80 e eram interpretados pela grande mídia de massa como brigas de gangues e vândalos, enquanto que na verdade se tratava de conflitos por espaços nas cidades, tendo como base o conceito de “point” como uma dos pilares de articulação desses grupos juvenis.

“Surra de cassetetes e humilhação. Isso tá memoria sempre. Nós éramos tratados como animais. Vi coisas absurdas naqueles anos, até a metade dos anos 90, resquícios da ditadura. Desde moleque, já ia em quase todos os shows de rock em SP, a violência dos fardados com a galera do metal era revoltante, mas era uma época de muito preconceito ainda arraigado e pra eles, headbanger era só vagabundo sujo, desordeiro e bêbado. No início, por volta de 83/85 até que éramos sim, pois havia essa raiva nos olhos contra a ditadura que finalmente tinha sucumbido, e o metal foi um gênero musical que surgiu como legitimo representante da rebeldia.” (Evaristo Júnior, banda Anthares)























REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHRISTIE, Ian; “Heavy Metal: A história completa”. Editora ARX. São Paulo/SP. 2010.
MARCUSE, Herbert. “A ideologia da sociedade industrial: O Homem unidimensional”. 4ª Edição. Rio de Janeiro/RJ. 1973.
JR. Evaristo. “Entrevista com a banda Anthares!”. Extraído de: http://residuotoxico.blogspot.com.br/2012/09/entrevista-com-banda-anthares.html. Último acesso: 13 de Junho de 2014.
 SARCÓFAGO. Rotting. [Belo Horizonte]. Cogumelo Records. 1989. 1 CD.
CANEVACCI, Massimo. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de Janeiro, RJ: Editora DP&A, 2005.
ABRAMO, Helena Wedel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo, SP: Editora Scritta, 1994.
60 grandes álbuns do metal brasileiro. RODIE CREW. São Paulo. N.172, Mai. 2013.
Os 81 melhores discos de 1981. RODIE CREW. São Paulo. Classic Series 003. Dez. 2011. Edição Especial



[1] Acessórios de plástico prateado, que fazem o formato de espinhos e são pregados às roupas



[1] EP, “extended play”, gravação que consiste de um número de faixas maior que um Single, mas mais curto que um álbum, possuindo geralmente de duas a oito faixas. 
[2] Termo utilizado para designar o fã de heavy metal.
[3] Técnica altamente veloz e agressiva, criada por D.D. Crazy da banda Sarcófago, e depois utilizada por músicos do mundo inteiro

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