Entrevista com Daniel Lopes da Comissão Municipal da Verdade (Sorocaba-SP).
1- Primeiramente gostaria que se apresentasse e falasse um pouco de sua trajetória na luta social-política.
Daniel Lopes - Comecei a participar das lutas políticas
quando cursei Direito, na Faculdade de Direito de Sorocaba. Lá, presidi o
Centro Acadêmico Rubino de Oliveira por duas gestões. Pouco tempo depois, fui
convidado a trabalhar na Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça,
oportunidade em que pude me aprofundar tanto na temática dos Direitos Humanos,
como no período da Ditadura Civil-Militar. Ao retornar a Sorocaba, decidi não
mais seguir o caminho do Direito. Recomecei os estudos, fiz faculdade de
Filosofia, na Universidade de Sorocaba, e, em seguida, iniciei meus estudos em
psicanálise. Hoje, atuo como professor e psicanalista, sem nunca deixar de me
engajar em questões que acredito.
2-
Como
foi a organização da Comissão da Verdade para Sorocaba? E como foram as articulações
para que ela ocorresse?
Daniel Lopes - A ideia de criar uma Comissão da Verdade em
Sorocaba me perseguia há tempos. Desde quando voltei de Brasília, para ser mais
preciso. Inicialmente, reunimos um pequeno grupo de interessados. Depois,
trouxemos o presidente da Comissão Estadual da Verdade, Adriano Diogo, para
transmitir um pouco da experiência estadual. Tudo muito informal. Pra você ter
uma ideia, está reunião com o Adriano se deu em minha casa. Dessa reunião,
elaboramos um documento, que tive a oportunidade de ler na tribuna da Câmara
Municipal. A Comissão foi aprovada por unanimidade. Então, iniciamos as
oitivas.
3-
Fazer
entrevistas que envolvam memórias apresentam alguns desafios, mas quando
falamos dos trabalhos da Comissão da Verdade, estamos falando de pessoas
queridas desaparecidas, assassinadas, torturadas fisicamente e
psicologicamente... Isso quando o próprio entrevistado não é essa pessoa. Como
é feito esse trabalho diante dessas pessoas?
Daniel Lopes - Sempre é muito tenso abordar tais questões,
seja para quem responde, como para quem pergunta. Não há como tocar uma ferida
e imaginar que não doerá, pelo menos um pouco. Na imensa maioria das vezes, os
perseguidos que foram torturados não gostam de contar detalhes da tortura, o
que é absolutamente compreensível. Aqui, na Comissão de Sorocaba, sempre
perguntamos sobre tais passagens, mas deixando a pessoa à vontade para detalhar
ou não. Alguns falaram, outros não.
4-
Alexandre
Vanucchi é o mais conhecido caso de um sorocabano assassinado pelos militares. Mas
me parece que aqui também temos um caso que envolve um assassinato, inclusive
de um menor. Pode nos contar um pouco sobre esse caso?
Daniel Lopes - Há dois casos, além de Alexandre, envolvendo
desaparecimento em Sorocaba: Gerardo Magela e Marco Antônio Dias Batista,
conhecido como: Marcos "Chinês". Magela era estudante de medicina da
PUC. Descrito como um jovem alegre, envolvido com o meio artístico e poeta.
Segundo a versão policial, ele teria se suicidado, saltando do Viaduto do Chá,
em SP. Adriano Diogo, quando depôs à Comissão Municipal da Verdade, refutou tal
versão policial, afirmando tê-lo conhecido em São Paulo, junto de Alexandre
Vannucchi, e que participava da luta contra a Ditadura, tendo sido assassinado.
Batista era sorocabano e desapareceu quando tinha dezesseis anos de idade.
Morou até os seis anos no bairro de Santa Terezinha. Depois, mudou-se para
Goiás, passando a militar na Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR de Carlos
Lamarca. É considerado o desaparecido político mais jovem do Brasil.
5-
Além
dos casos da pergunta anterior, poderia nos contar um pouco sobre algo que foi
revelado necessariamente com os trabalhos da Comissão Municipal da verdade e
que te chamou a atenção?
Daniel Lopes - O próprio esclarecimento do assassinato de
Gerardo Magela. Fiquei muito emocionado com o depoimento de uma libanesa, Sra.
Waddad Farah, a Dona "Odete". Era comerciante na cidade, Rua Coronel
Benedito Pires. Seu marido participava de reuniões políticas de esquerda. Ela
foi presa grávida e quase abortou. Quando ela e seu marido foram soltos, não
havia mais quem comprasse em seu comércio, as dívidas cresceram e saíram da
cidade. Já fora, viu seu casamento acabar, muito em consequência dessa prisão.
Também me chamou atenção a presença de muita movimentação política contra a
Ditadura, de moradores da Vila Jardini. Caberia uma investigação mais
detalhada.
6-
A
Comissão Municipal da Verdade (Sorocaba) cumpre um importante papel na
investigação no que tange a violação dos direitos humanos durante o governo
ditatorial- civil-empresarial-militar (1964/85). Diante disso, gostaria de
saber qual o alcance político que essa Comissão Municipal possa ter (ou teve)
em Sorocaba? Como os cidadãos sorocabanos veem (entendem) essa comissão? Você
acredita que a truculência, o autoritarismo do regime militar são coisas do
passado, ou há muito o que se fazer nesse sentido quando pensamos a sociedade
brasileira?
Daniel Lopes - Teremos um livro, a ser escrito pelo
jornalista Julio César Gonçalves, acerca do trabalho de nossa Comissão. Assim,
as cidadãs e os cidadãos que não puderam acompanhar as investigações e
depoimentos, poderão conhecer mais pelo livro. Todo o trabalho feito em Sorocaba
está na Comissão Nacional da Verdade. As comissões funcionavam articuladamente.
As comissões são importantes porque contam uma parte da história que fora
amordaçada. E se faz atual, quando verificamos pessoas sugerindo intervenção
militar por terem sido derrotadas democraticamente em pleito eleitoral. Assim,
cumpre papel pedagógico. Lembro-me daquele artigo de Carlos Nelson Coutinho,
grande marxista: "A democracia como valor universal". Não devemos
fragilizá-la, senão radicalizá-la.
7-
No
final, como a mídia local lidou com a existência da Comissão Municipal? Houve
algum tipo de resistência / negação em relação ao trabalho de vocês ou todos
foram solícitos?
Daniel Lopes - Sempre que solicitamos, houve ampla divulgação
das mídias. Espontaneamente, em raríssimos casos. Penso que dentro dos
conformes. Houve poucas reações críticas: um leitor ou outro na coluna de
cartas; um ou outro jornalista. Mas a maciça maioria apoiou. Inclusive, o
jornal Cruzeiro do Sul fez um brilhante editorial, defendendo a Comissão, bem
como a punição de torturadores.
8-
Bom
vamos finalizar por aqui, obrigado pela atenção Daniel. Sua luta com a Comissão
foi uma grande inspiração e tenho certeza de validade indescritível em termos
humanos e sociais para todos que acreditam nos caminhos da justiça e igualdade.
Daniel Lopes - Obrigado, Fábio. Um abraço a
todos e todas que lêem e participam dos Resíduos Sólidos! Estarei sempre à
disposição. Tenho muito respeito por você e pela Keyla, professores idealistas
e comprometidos com a transformação da sociedade. Ninguém mata a verdade!
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