Racismo e combate. As opressões e resistências no rock.
Uma coisa que desenvolvi ao longo dos anos com minha formação em
história e minha atuação como professor da rede estadual em São Paulo, foi a
questão de tomar cuidado em sair gerando conteúdo de forma irresponsável e
superficial. Gerar mais paradigmas não só é grave como empobrece o debate.
Convenhamos, é o que mais vemos em rede social, essa irresponsabilidade de informação e conteúdo: o cara faz um meme machista na comunidade de RPG, apaga e diz que foi mal interpretado, aí outra página reproduz algum estereótipo imbecil sobre a URSS, como “6milhões de mortos na Albânia no governo do Stalin” enquanto o país não tinha 2 milhões de habitantes, ou a clássica sobre a presidenta Dilma que supostamente vai mandar “bloquear” a internet no país... Como isso tudo é frustrante!
Convenhamos, é o que mais vemos em rede social, essa irresponsabilidade de informação e conteúdo: o cara faz um meme machista na comunidade de RPG, apaga e diz que foi mal interpretado, aí outra página reproduz algum estereótipo imbecil sobre a URSS, como “6milhões de mortos na Albânia no governo do Stalin” enquanto o país não tinha 2 milhões de habitantes, ou a clássica sobre a presidenta Dilma que supostamente vai mandar “bloquear” a internet no país... Como isso tudo é frustrante!
Entretanto, parece que a galera que gera conteúdo não deve se
preocupar nada sobre isso, o lance é promover sensacionalismo barato por aí e
só ver meios de buscar visualizações desesperadamente, criando um nicho de
mercado e de seguidores que, no máximo, conseguem basear suas opiniões em memes.
Afinal a informação, que deveria ser um direito humano, é uma mercadoria, mesmo
que gere conteúdo ofensivo.
Eis que essa semana me deparo com um texto, que em algum momento
tenta ser crítico, sobre a posição racista de Phil Anselmo (Pantera, Down) e no
fim reproduz uma visão estereotipada pautada na leitura de rock de mercado com
base nas experiências do autor com o rock. Pois bem se é para cair nesse
relativismo de “vivência”, eu acho que posso destacar algumas, afinal fui
produtor de shows, alguém que participou e ainda milita em movimentos sociais,
estudantis e sindicais, palestrei sobre o heavy metal na Semana de História da universidade
na qual me formei e convivo cotidianamente com gente de várias bandas punks e
de heavy metal.
Meu primeiro show fora da minha cidade e que era um que não havia
sido eu o produtor, foi em Salto, no festival chamado Metal For All. Um
festival bem na contramão do mercado, voltado a bandas undergrounds de sons
autorais. Ok, ok, não havia discurso de revolução e nem nada, como também não
havia nos shows de rap, blues, tango que já fui (e também, se houvesse, não
seria mais que um cartaz, algum discurso de vanguarda). Mas vamos lá. O que me
chamou a atenção dessa edição em particular do MFA era a presença de uma banda
que havia me deixado “apaixonado” por umas entrevistas, o Violator. Eu estava
acabando de me permitir curtir thrash e essa banda tinha acabado de rejeitar a
proposta de uma das maiores gravadoras de heavy metal do mundo alegando não
transformar sua arte em produto e não abrir mão de coisas como círculo de
amigos, entre os quais Antonio Roldão, da Kill Again Records, que era quem fazia
os lançamentos do Violator.
Durante o show, posso dizer que me perdi de vez ao thrash, a
energia era demais. A forma como as bandas conversavam com o público, vendendo
seu próprio material ali entre bate-papo e fotos... Ainda destaco a posição da
banda, que é bem conhecida no underground por seu lado politizado e militante,
ante mesmo à seus fãs quando estes cometem algum comentário machista, racista e
homofóbico em sua página ou mesmo no FB de algum dos integrantes. Fora os intermináveis
discursos do vocalista Pônei em não coisificar a vida, os amigos e os ideais. Outro
show que foi muito marcante nessa trajetória e mudaria minha vida foi outra
edição do Metal For All que trouxe os caras de Blasthrash e BrainDeath. Dali, conhecendo
mais alguns integrantes dessas bandas e começando a trocar ideias com eles no
antigo Orkut, foi que percebi de vez que no Brasil haviam malucos que, assim
como eu e meus amigos, acreditavam em um heavy metal intenso e humano, e foi do
Braindeath que fomos buscar um de nossos melhores amigos e um dos mais
importantes colunistas e companheiros na luta do RxTx, o Felipe Nizuma.
Mas, enquanto fala de vivência no rock, eu fico pasmo dos caras
citarem um colunista da Folhateen (mesmo?!) que diz “as únicas coisas boas já
feitas em nosso país eram Racionais, Mutantes e Sepultura”: isso é provar que o
cara que escreveu isso não entendeu o que é rock! Em geral quando vejo entrevistas
de bandas não é raro comentar a importância de um artista ou gênero musical FORA
do rock na sua música (Sepultura fez e faz muito isso), e é muito comum ver os
caras destacarem a música nacional! Falo de caras como o Angra em escolas de
Samba, dos caras do Claustrofobia, do Krisiun e até comumente vejo na página de
um Semblant, Torture Squad e Cangaço. Ainda temos o Arandu Arakuaa, que traz a
imensa influência musical indígena em seu death metal, pela vivência de seu
vocalista ao lado da tribo Xerente em Tocantins. Isso me restringindo a poucos
nomes do metal, mas, tudo bem, só acho complicado ainda estarmos correndo atrás
do cara que disse “rock é o melhor estilo musical”, e na real? Se pra ele é, é.
Como em qualquer estilo/ gênero musical.
No próprio RxTx nós saímos há tempos do marasmo de escrever sobre
“Stones, Nirvana, Ramones e RATM” e passamos a criar um elo de amizade e
divulgação de bandas de vários contextos, não falando somente de música, mas
sim de visões de mundo, projetos socioculturais e principalmente de pessoas,
afinal vemos o underground de uma forma geral como “uma grande rede de amigos”.
Entrevistamos o Skinflint, de Botsuana, país da África Subsaariana, que faz um
som a la Iron Maiden com Motorhead, com uma pegada de música nativa e letras
sobre o que eles entendem ser legal de destacar de sua cultura, assim como cultivamos
contato com o Resistant Culture, uma banda composta por indígenas dos EUA e que
toca um grindcore bem intenso, assim também como trouxemos membros do Mito da
Caverna e do Braindeath, bandas do Estado de São Paulo, escrever conosco.
Não obstante, entrevistamos o François, professor de história, como
eu e a Keyla, e que toca em uma banda importante do underground francês, o
Hurlement, assim como o The Force, do Paraguai, foi outra que apareceu por aqui
e falou da repressão policial em seu país. Há as meninas do Pandora, banda
nacional só de garotas, em uma matéria que fizemos em conjunto com as postagens
da Keyla sobre dia internacional da mulher. Antes ainda do RxTx,, quando eu
chamava o projeto de Eco Rock 07, conheci Jeff Brenes, doutor em antropologia
na Costa Rica que me contatou para divulgar o documentário que realizou sobre
sua tese de mestrado (cujo tema era metal extremo e a ligação do som extremo
com o cenário político-social da América Latina). O nome do documentário é “Cadáver
Exquisito - la cultura Metal en America Latina”.
Por incrível que pareça ele e o Andreas, doutor em música pela Universidade
de Buenos Aires e na época músico da Dark Templar (um gothic metal), curtiram
alguma maluquice no Myspace de um Fábio com não mais e 17 anos e apaixonado por
Marx e heavy metal. Sabe, no undeground, de uma forma geral, mesmo longe desse
“rock nacional” de Faustão e das grandes gravadoras, tem muita gente metendo a
cara fazer som, apoiar a banda do amigo , militando, organizando coletivos e
seus festivais e tours. É verdade, existem contradições (a galera “descobre” isso
e parece que está pisando na lua, se sente super rebelde), e que pobre é essa leitura
de “ah, no underground não pode”: a música, queridos, não é militância política,
não é partido e não há fronteiras. É natural que por ela transite todo tipo de
pessoa. Pessoas como Jeff Brenes, Sandra Sbrana, Phil Anselmo, Augusto Miranda,
Lemmy, Rob Halford, Edith Cooper...
É claro que é particularmente legal quando é feita música engajada
e politizada, mas não é o seu cerne (isso nós fazemos em movimentos sociais, em
grupos de formação e, convenhamos, há até movimentos que usam música
despolitizada e às vezes até machista – como foi “Ai se eu te pego” do Michel
Teló - como base de um hit de protesto, talvez pelo lado mais “popular da
música” ou uma forma de se apropriar e reverter essa lógica), e quando me
refiro sobre a música não precisar ser politizada, cito o caso de Bob Dylan,
destacado por Hebert Marcuse da Escola de Frankfurt. Quando fala da arte na
sociedade unidimensional, Marcuse destaca a capacidade do músico em se
reinventar. Quando todos esperavam mais um disco politizado Bob Dylan,
elegravou algo sobre... Amor. Falar de política naquele momento seria seguir
uma tendência de mercado, o discurso comum que todos esperavam dele, continuar
no marasmo de não se reinventar... O que seria mais unidimensional?
A MPB é música brasileira e devemos exaltá-la por essa razão? Ser
brasileira? Sério? Parece-me um discurso nacionalista, de “valorize a cultura
de seu país e ignore a do outro”, ainda mais destacando que muitos membros dela
não se viam bem como parte de um movimento político como às vezes entusiastas
inflamam essa narrativa da história. Em 1973, Gilberto Gil aceita um convite de
estudantes da USP (após convencimento do "Chinelo" - os estudantes
tinham e usavam esses codinomes), e com seu violão vai fazer um show de meia
hora, que na verdade se converte em 3hrs de show! Bate-papo com os estudantes
sobre arte, política e ativismo. Toca uns sambas e uns rocks. Os
estudantes aproveitam e falam da morte do Alexandre Vanucchi e das prisões de
mais de 33 estudantes, sendo que 29 estavam soltos e outros 4 ainda estavam
presos e sendo torturados entre eles o querido Adriano Diogo, o "Mug".
Veja que nenhum momento essa iniciativa parte do Gil, apesar de nessa época
estar mais ligado à galera da linha de frente das músicas populares de protesto
como Chico Buarque.
Essa ele (Gil) conta (no show de 73):
" – Vou cantar
um rockinho que eu fiz para um amigo meu, pra uma bicha baiana, maravilhosa,
artista plástico. Ele canta também. Um dia chegou para mim e disse assim: ‘quero
que você faça uma música para mim, assim, parecida com Alice Cooper. Quero
pintar misérias, fazer misérias no palco.’(...)"
Como conta no livro de Caio Túlio, nesse mesmo show Gil fez
críticas a essa “coisa de música de protesto”.
Entretanto, a citada pelo autor (MPB), volta e meia carrega ares elitistas
e classicistas bem longe dos shows de R$5,00 e das músicas tocadas por aqueles
que não podem pagar por bons professores e cursos de violão ou outro
instrumento, além do mais esse nacionalismo de “defender a cultura nacional”
foi uma linha de frente bem articulada na ditadura (coisa que a MPB confrontou),
assim como no rap (outro estilo musical que curto muito) tem gente com pé bem
fincado no machismo (lembrando que em vários raps nacionais o termo “estuprar”
não é tão incomum, na verdade, às vezes, é verbo); e existem diversos grupos de
rap feministas que contestam isso, assim como as mulheres no rock cada vez mais
contestam o “machismo” que se faz presente em algumas bandas, em algumas cenas
e em muitas falas – isso se chama resistência e no rock temos também.
Se o racismo se faz presente no rock, não é ele sua raiz. A música
é a expressão das sociedades que em muitos contextos é racista, é classista,
violenta e opressiva. Isso nós vemos e repudiamos no cenário do rock (como de
uma forma geral na sociedade). No nosso meio não raramente somos taxados de
chatos, de moralistas, politicamente corretos, “intelectualóides de esquerda”
até pão com mortadela já fomos acusados de receber (não é atoa que a maioria
das pessoas que nos lê são nossos ex-alunos e não nossos amados “roqueirões
true” conservados em casca de ovo de cobra). Nada disso importa ainda mais
quando temos algo sério a perder.
Entretanto também há várias
alternativas e quem apresente projetos distintos (como os citados no texto e
grupos como o RxTx, composto por mulheres, negros, brancos do proletariado que
se focam em um projeto de sociedade e ativismo e metem a cara pra fazer as
cosias e militar. “Metal, ativismo e resistência” ). Não existem barreiras
definidas, nem no underground nem em qualquer espaço, que inibam a transição de
ideias da Casa Grande e Senzala ou mesmo de valores moralistas/
tradicionalistas que entendem LGBT e mulheres dentro de espaços próprios mas
nunca na vanguarda ou em espaços alternativos. Mas sempre haverão aqueles que resistem
e contestam com unhas e dentes essas visões.
Não é porque ouviu DER ou Comando Nuclear que o cara terá um lampejo
e superará sua formação dentro dessa sociedade ignorando o contexto e a
história de opressão, no máximo ajuda um pouco ler alguma letra ou ver algum
posicionamento da banda. Mas, em geral, não muda nada, por mais que as bandas
tragam consigo posições bem claras de rejeição e enfrentamento de tais
posições. E quantas dessas pessoas e integrantes de bandas eu vejo se digladiando
com fãs, amigos e familiares por sua visão humana/social.
A questão é justamente essa. Se não podemos negar a historicidade
perversa e cruel que carrega os pesos da colonização brutal promovida pelo
branco europeu (algo que o Brutal Morticínio e o Myasthenia falam) e seu “sentido
da colonização” (Caio Prado Jr. disserta sobre a lógica de abastecer os
mercados na Europa com extrações violentas nas colônias), da nebulosa ditadura
civil-militar (o Torture Squad gravou um álbum brilhante, que contou com um
historiador ajudando nas referências) até a conjuntura de hoje, o que podemos
fazer é repudiar, contestar, desafiar e se fazer pensar sobre, em um processo
contínuo de resistência.
O autor ainda lança um desafio: sobre frotmans de bandas nacionais
negros e nordestinos dos anos 80. Eu me indago: porque raios precisam ser dos
anos 80? É algum saudosismo da época em que faziam “música de verdade”? Os anos
80 trazem ainda resquícios de uma música popular elitizada, é um contexto no
qual a população pobre começava a superar os impactos do “milagre econômico”
dos militares e estariam entrando em um neoliberalismo brutal. A classe
trabalhadora mal tendo o que comer, é óbvio que haveriam raríssimos casos de
músicos negros e nordestinos no rock. Já parou para pesar quanto custa uma
bateria das mais simples? O underground nacional não veio de berço de ouro. E
pela conjuntura não é difícil entender que a população negra ficou de fora mais
intensamente nesse processo de formação de bandas.
Mesmo assim o underground
trazia jóias, independente da Folhateen (^^), e, respondendo o desafio, eu gosto muito do
Headhunter DC, da Bahia, um death metal ferradão; ainda da Bahia tem o
Mystifier, black/death metal que trazia Beelzeebubth (Armando da Silva), um
negro no baixo... Sobre mulheres no rock temos o Volkana, do DF, uma banda de
heavy/thrash só de mulheres. E vou destacar de novo: eu ainda nem entrei na
parte de punk e hardcore, que ainda trariam coisas lendárias como Cólera, banda
punk de São Paulo.
E das bandas atuais, posso citar várias bandas do nordeste!
Blasfemador, Carcará, Escarnium, Jack Devil, Arandu Arakuaa, Cangaço, o próprio
Headhunter está bem ativo, algumas com integrantes negros, outras com indígenas,
assim como com mulheres, como Semblant, Pandora, Nervosa, Ecliptyka, Fire
Strike e tantas outras bandas.
Assim como a luta de classes transcende fronteiras e a condição de
explorado do proletariado idem, o underground e o “faça por você mesmo” segue
esse caminho do internacionalismo, com uma pegada mais anárquica provavelmente,
porque DIY é algo que vem do punk. E sobre esse caráter internacionalista, não
tem espaço para nacionalismos baratos e piegas. Como o proletariado se
confronta com lumpemproletariado, com
a burguesia, com seus valores sobre pátria, família, seu imperialismo, seu
racismo, seu machismo... O rock vem lutando há anos, no seu próprio espaço.
Como eu mesmo disse no RxTx sobre Robb Flynn, ele não é o salvador do dia, e
não foi o primeiro dentro do estilo a fazer isso (contestar declarações
racistas), mas foi alguém de uma banda mais inserida na indústria que fez
isso... Talvez por isso seja novidade para quem acompanha pela mídia, essa
contestação nesse espaço em disputa (que, por sinal, quer coisa mais
anti-dialética, anacrônica e paradigmática que pensar em espaços sem disputa na
nossa sociedade? E que o rock seria esse espaço? Tcs, tcs,tcs...).
O rock não vai salvar o mundo, não vai fazer a revolução (e é bom destacar que em momento algum eu disse isso) e convenhamos é um espaço com racismo bastante difundido, mas enquanto houverem espíritos de adolescentes buscando refugio na música dos inconformados, ele vai estar lá, com suas resistências, independente do contexto social. Certa vez Felipe Nizuma disse em uma entrevista do RxTx pela banda Urutu e Braindeath: “Faça por você mesmo, juntos, como na luta de classes”. Um importante pensador e militante do movimento negro nos EUA, Malcolm X, entendia que para superar as opressões sociais (no caso o foco do autor era o racismo) era preciso derrubar o capitalismo. Ignorar as resistências não só não dialoga com essa ideia dele como abraça fortemente o pensamento tradicionalista de “sem disputas”. Nossa aposta é em ter práxis consistente e coerente, e, de vez em quando, contestar conteúdo problemático e generalista de internet.
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